sábado, 28 de março de 2020

Ciclismo romântico em tempos de quarentena: Episódio 5

Fausto Coppi: Etapa 17 Giro Itália 1949

A etapa 12 do Giro de Itália 2019, disputada entre Cuneo e Pinerolo, celebrou uma das mais míticas epopeias ciclísticas de todos os tempos. A etapa teve apenas 158km e a única dificuldade montanhosa foi a subida inédita a Montoso, mas em 1949 a ligação entre estas duas localidades passou pelas mais difíceis montanhas alpinas. Dos 254km faziam parte as subidas ao Col Maddalena, a Vars, ao terrível Izoard, a Monginevro e a Sestriéres e todas elas foram conquistas por um único homem, sempre em solitário. A 10 de junho de 1949, na 17ª do Giro, Fausto Coppi entrou para a história das lendas ao percorrer sozinho, quase na totalidade, a etapa que viria a dar ao “campionissimo” italiano o seu terceiro Giro de Itália.

Nesta altura o ciclismo era marcado por uma rivalidade única. Dois italianos disputavam entre si o reinado do ciclismo. Um, mais velho, tinha vencido a edição do Tour de France de 1948 e assim evitado uma guerra civil em Itália. Outro, mais novo, queria também ficar na história da modalidade e do seu país. Em 1949 Bartali tinha 35 anos e no seu currículo já constavam duas Grande Boucle e três Giros. Coppi com os seus 30 anos e as suas duas camisolas rosas (1940 e 1947) procurava o topo que até aí parecia pertencer ao seu rival. As disputas épicas entre Coppi e Bartali ficaram para sempre recordadas pelos relatos de Dino Buzzati, Mauro Ferreti ou Pierre Chany. Os tempos eram outros e as conquistas no ciclismo eram descritas pela criatividade dos grandes jornalistas que faziam da narração de cada etapa verdadeiros romances que levavam ao êxtase os adeptos da modalidade. Mais que as táticas de corrida ou os tempos ganhos ou perdidos, os amantes de ciclismo procuravam emoção e isso era conseguido com os magníficos textos dos jornais do dia seguinte ou com as emissões de rádio em direto.

Mas voltando à etapa 17ª do Giro de 1949.

A competição não corria de feição a nenhum dos campeões. Bartali estava longe da liderança. Reza a lenda, ou melhor, dizem os relatos da altura que o atraso de Bartali se deve a um episódio logo na primeira etapa da prova. Num dia muito quente, com uma etapa entre Catania e Palermo, Il Pio aceitou a bebida de um espectador. Momentos depois começou a vomitar e não terminou a etapa levando com muito tempo de atraso. Começaram a circular a hipótese, nunca confirmada, que Bartali foi vítima de uma sabotagem e foi envenenado. Corriam os rumores que haveria uma rede de apostas ilegais orquestrada pelo “mafioso” Salvatore Giuliano que era grande fã de Coppi. O objetivo era tirar Gino Bartali da luta pela vitória do Giro 1949. Verdade ou apenas mito, o que é certo é que Bartali esteve sempre com performances muito abaixo das expectativas. Na derradeira oportunidade para vencer a competição, a etapa 17ª que percorria grande parte dos Alpes transalpinos, Bartali já levava mais de 10 minutos de atraso para Adolfo Leoni que vestia a camisola rosa.

Fausto Coppi, ao contrário das suas próprias expectativas e do seu diretor desportivo, também estava atrasado. Com uma diferença de apenas 43s para Adolfo Leoni, Coppi só já tinha esta oportunidade para vencer o Giro de Itália.  

O dia 10 de junho de 1949 acordou chuvoso e o frio fazia-se sentir em Cuneo. A jornada era longa e tinha 254km. O diretor desportivo de Coppi perguntou-lhe o que deveria colocar nos bolsos das camisolas dos seus gregários. O campeão respondeu: “pão, salame e uma lanterna”. A lanterna seria necessária porque Coppi sabia que os companheiros de equipa iam chegar já depois do sol posto. O sinal estava dado. Fausto Coppi preparava algo transcendente.  

A etapa arrancou e logo no início se percebeu que a jornada seria marcada pelas estradas em péssimas condições e cheias de água e lama. Primo Volpi foi o primeiro a atacar e passados uns km Fausto Coppi foi ao seu alcance. Quando passaram no alto da primeira montanha do dia, a Maddalena, já Coppi estava sozinho. A epopeia tinha começado e faltavam ainda 192km para a meta instalada em Pinerolo. Todas as grandes dificuldades do dia foram ultrapassadas por Coppi que km após km via alargada a distância para os seus rivais. Lá atrás, também sozinho, corria o “velho” Bartali numa perseguição desumana com a cara cheia de lama, de boca aberta e com sinais de desfalecer. Não conseguiu alcançar Coppi que chegou sozinho às terríveis rampas finais em La Casse Déserte no Col d´Izoard. Este episódio ficará para sempre no relato de Mauro Ferreti. A emissão radiofónica parou e Ferreti descreveu a corrida com a frase que ficou conhecida como uma das mais famosas do ciclismo e do desporto italiano até os dias de hoje e não precisa de tradução, é universal:

“ un uomo solo é al comando, la sua maglia é bianco-celeste, il suo nome é Fausto Coppi “

Il Campionissimo Fausto Coppi ficou para sempre imortalizado no Col d’Izoard. Foi descrito como um rato na montanha e os espectadores juraram que o italiano flutuava em Casse Déserte desafiando as leis da gravidade.

A etapa foi-se aproximando do fim e quando Fausto Coppi cruzou a meta em Pinerolo o relógio marcou 9h19m55s. Coppi tinha feito o impensável. Sozinho conquistou todas as montanhas do dia e assim levou para casa a camisola rosa de vencedor do Giro de Itália. Gino Bartali chegou 11 minutos depois e o terceiro classificado, Alfredo Martini, a mais de 19 minutos.

O jornalista francês Pierre Chany traduziu o dia de uma forma muito simples. Ao enviar o seu trabalho para o jornal onde trabalhava disse que depois de ver chegar Coppi e Bartali, foi jantar. Comeu um prato completo, com sobremesa e café. “Depois fumei um cigarro e pedi a conta. Paguei e saí. O sexto ciclista ainda não tinha chegado. “

A 10 de junho de 1949 Fausto Coppi fez história. A etapa 17 do Giro de Itália desse ano é o mais brilhante capítulo da bíblia ciclística dedicado ao “ciclismo romântico”.

 

 
 
 

1 comentário:

  1. Excelente trabalho. Aqueles episódios míticos que apenas os mais apaixonados se lembram.

    ResponderEliminar