segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Orcières - Merlette : a epopeia de Luis Ocaña.

 

Orcières - Merlette : 1971

A primeira chegada em alto do Tour de France 2020 acontecerá hoje na estância de ski de Orcières- Mertette. Uma 1ª Cat com 7,1km de extensão e uma média de inclinação de 6,7%. As percentagens ao longo da subida são constantes e regulares e por isso a subida a Orcières – Merlette não deverá provocar grandes diferenças entre os favoritos a vencer o Tour de France. É a quinta vez que a pequena estância de ski situada nos Hautes-Alpes a 1825m de atitude recebe uma chegada da Grande Boucle. Se hoje é de esperar que não haverá diferenças significativas entre os principais favoritos, o mesmo não se passou a 8 julho de 1971. Um dos dias mais espetaculares do Tour. Um dia em que no seu expoente máximo de domínio, o merckxismo foi derrotado por KO!

A edição 58 do Tour de France partiu para a estrada em Mulhouse com três grandes candidatos a vencer a competição. Eddy Merckx tinha ganho nos dois anos anteriores com grande margem de vantagem para os seus adversários. Em 1969, o ano da sua primeira vitória no Tour, o “Canibal “belga vence todas as camisolas e acaba em Paris com 17m54s a menos que o francês Roger Pingeon.  Da Holanda vinha um jovem trepador que deu nas vistas na Vuelta disputada no mês de maio ganhando a classificação da montanha. Falamos de Joop Zoetemelk que haveria mais tarde de vencer o Tour de France (1980) , a Vuelta ( 1979) , os campeonatos do mundo ( 1985) além de outras provas de grande prestigio. E finalmente de Cuenca, Espanha, o ciclista da BIC Luis Ocaña que havia vencido a Vuelta 1970 e em 1971 apresentava-se num excelente momento de forma ao ponto do próprio ciclista espanhol a afirmar que no Tour de 1971 iria vencer Merckx. Isso não aconteceu e já vamos saber porquê.

Luis Ocaña e Eddy Merckx - Tour 1971

Ocaña não venceu o Tour de 1971, mas foi o seu grande herói.

Na etapa 8 com final em Puy de Dome, Luis Ocaña ataca a 5km da meta sendo perseguido por Agostinho e Zoetemelk. Merckx é o último dos grandes favoritos a responder, mas consegue encurtar a distância para o espanhol de tal forma que chega ao cume de Puy de Dome com apenas 15s de atraso para Ocaña. Eram apenas 15s, mas foi a primeira vez que o Canibal foi desafiado e sai derrotado. A margem de 15s de Ocaña para Merckx seria alargada na jornada entre Saint-Étienne e Grenoble. Merckx fura e na frente Ocaña e o holandês Zoetemelk aceleram para ganhar 1m36s ao Canibal. Zoop era agora o novo camisola amarela.

Até que chega o grande dia. O dia em que Ocaña faz uma epopeia a recordar Bartali e Coppi. Uma jornada de apenas 136km onde o espanhol arrasa a concorrência a muitos quilómetros da meta instalada em Orciéres- Merlette. Um dia de loucos onde logo na Côte de Laffrey o português Joaquim Agostinho, nesse ano a correr pela Hoover tendo terminado em 5º lugar, é o primeiro a atacar forte a corrida. De tal forma que o pelotão foi completamente dizimado nas primeiras inclinações de “a Rampa “, como é apelidada localmente a Cotê de Laffrey. O ritmo de Tinô era impressionante e começa a abrir um espaço interessante para os restantes adversários. Lá atrás, Ocaña decide avaliar as condições físicas de Merckx. Ao ritmo forte do espanhol em busca do português, o belga não tem capacidade de responder e mais uma vez verga perante a força de um Luís Ocaña que parece voar nas rampas do Tour 1971. Misteriosamente o diretor da Hoover manda Agostinho esperar pelo trio que fugiu do pelotão e no cume da Cotê de Lafrrey o português foi o primeiro a passar, mas já com a companhia de luxo de Van Impe, Zoetemelk e Ocaña

Agostinho, Ocaña, Zoetemelk e van Impe - Etapa 11 : Tour 1971

Depois no Col du Noyer todos vergaram perante a exibição de Ocaña que sozinho, em contrarelógio, enfrenta a derradeira subida final a Orcières- Merlette. Ao cruzar a meta o inimaginável no Tour 1971. Luis Ocaña termina a etapa vestido de amarelo. Atenção, com 8m42s de vantagem para Eddy Merckx. Sim, em 1971, Ocaña derrota Merckx de tal forma que o belga chega a afirmar: “Ocaña matou-nos a todos, como os toureiros fazem nas touradas” . E conclui: “é isto o desporto. Na vida, como no desporto, assistimos a acontecimentos fantásticos. Não há mais nada a dizer. É essa a regra, saber reconhecer o mérito”.

Ocaña - Orciéres- Merlette
O Tour de France de 1971 estava perto de estar decidido. À entrada para a última semana de competição, nos Pirenéus, a vantagem de Ocaña para Zoetemelk que ocupava a segunda posição era de 8m43s e para Eddy Merckx (5º lugar) uns impensáveis 9m46. Com a moral em alto seria um passeio para o espanhol que viveu em França desde tenra idade. Mas não foi. Massacrado por várias quedas ao longo da carreira, Ocaña vê mais uma vez o azar bater-lhe à porta.

A chuva, o vento e o granizo apareceram de forma intensa na etapa 14 que ligava Revel a Luchon. Na descida do col de Menté Eddy Merckx procura distanciar-se de Ocaña de tal forma que falha uma curva e cai. O espanhol não consegue evitar o embate e vai também ao chão. Enquanto Merckx se levanta e recomeça, Ocaña fica no chão com o pé preso no pedal. Zoetemellk também não consegue evitar a queda e bate de frente com o espanhol. O camisola amarela fica muito mal tratado temendo-se o pior. É o abandono de Luis Ocaña que é transportado para o hospital de helicóptero. Merckx vence a etapa e veste também de amarelo. Não foi bem assim. Ao saber do sucedido a Ocaña, o Canibal recusa-se a subir ao pódio em Luchon e recusa-se também a vestir a camisola amarela, pois para Merckx essa “é do Luis com todo o mérito”. Foi até mais longe, não queria vestir a camisola mais desejada até ao final em Paris. Depois de muito insistir, a organização lá convenceu o belga a usar o símbolo de líder da Grande Boucle e é de amarelo vestido que Merckx vence o contrarrelógio final de Versailles a Paris onde Joaquim Agostinho foi segundo classificado.

Ocaña: Col de Menté

Ocaña recupera do trágico acidente e apresenta-se no Tour do ano seguinte pronto para mais uma vez desafiar Eddy Merckx. O belga não tinha o Tour de 1972 nos seus planos, mas devido aos críticos que afirmavam que o Canibal só tinha vencido o seu terceiro Tour por causa da infelicidade de Ocaña, Merckx muda o seu calendário e apresenta-se para o tão aguardado duelo. Só que Ocaña é um ciclista de azar e uma grave crise de bronquite força-o a abandonar a competição nas etapas dos Pirinéus.

Em 1973, aproveitando a ausência de Merckx que compete e ganha o Giro e Vuelta, o ciclista de Cuenca vence o Tour de France em 1973 ainda ao serviço da BIC com a ajuda do português Joaquim Agostinho.

Luis Ocaña, Tour 1973

Luis Ocaña morre de forma trágica em 1994 com 48 anos de idade, mas isso agora não interessa para nada! 

Viva Don Luis de Cuenca!

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