quarta-feira, 27 de junho de 2018

Abdel Kader Zaaf: se pedalares não bebas!


Abdel Kader Zaaf : Tour 1950
A frase que todos conhecemos não é bem esta. É parecida! Mas o princípio, os efeitos e algumas das consequências são as mesmas se conduzirmos embriagados.
Mas o que é que isto tem haver com as bicicletas, o mundo do ciclismo e o Tour de France? É simples. Uma das histórias mais incríveis e caricatas do mundo velocipédico está relacionada com calor, sede e álcool em proporções maiores que as desejáveis.
Na década de 50, época de ouro do ciclismo, todas as grandes nações tinham um punhado de grandes ciclistas numa autêntica constelações de estrelas. De Itália vinham o “Il Pio” Bartali , o “campionissimo” Coppi e o guerreiro Magni. De terras gaulesas o pequeno Robic, aquele que colocava chumbo nos bolsos para descer mais rápido, Bobet e o imparável Anquetil. De Espanha Bahamontes, da Suiça Koblet e da Bélgica Ockers e Impanis. Uma seleção de luxo no pelotão internacional. Mas havia um nome muito popular entre os adeptos e aficionados pelo ciclismo, sobretudo em França. Vinha de uma parte do globo até então “exótica “para a modalidade e pouco dada a pedaladas. O seu nome era Abdel Kader Zaaf, no ciclismo apenas Zaaf .
Zaaf nasceu em 1917 em Chitouane, na Argélia, tendo emigrado para França mais tarde. Era um ciclista modesto. Tinha no seu palmarés um punhado de vitórias na volta a Marrocos e na volta do seu país natal. Em França apenas conseguiu triunfar em provas secundárias e de menor prestígio, mas a admiração do público era enorme e as suas extravagâncias a par da sua devoção muçulmana uma imagem de marca.
Zaaf, tal como todos os outros ciclistas de segundo plano, tinha um sonho. Um sonho difícil de alcançar, mas que o argelino sempre lutou para o conseguir concretizar. Zaaf queria ganhar uma etapa no Tour de França. Esteve muito perto no Tour de 1950.
A etapa ligava Perpignham a Nîmes num total de mais de 250km. O calor era intenso, os principais ciclistas estavam num frenesim fora do normal, mas Zaaf mantinha-se calmo. Afinal toda esta temperatura não era estranha para um africano. O argelino rezou, como era habitual antes da partida e pensou que era hoje o seu grande dia.
"Inshallah”, pensou ele!
A etapa corria normalmente, até que a 100km de Nîmes, Zaaf decidiu atacar. Ninguém seguiu na sua roda com exceção do francês Marcel Molinés que se colou a Zaaf como uma pulga. Isso não o preocupava, mas tarde ou mais cedo o francês descolava, afinal o calor era cada vez mais e o africano era Zaaf. Os quilómetros passavam, a vantagem para o pelotão aumentava e os dois bebiam muito. Tal como uma etapa de montanha os espectadores ofereciam muita bebida aos ciclistas, regavam-nos com mangueiras e passavam-lhe esponjas por cima do corpo. Toda a ajuda era pouca pois o calor parecia derreter o alcatrão e Nîmes nunca mais aparecia no horizonte.
Já a menos de 20km do fim, Zaaf agarrou numa garrafa vinda da mão de um adepto. Bebeu três longos tragos, mas no último momento sente um sabor muito amargo. Ainda cuspiu, mas grande parte do vinho Corbiéres já tinha sido ingerida pelo argelino. E sendo muçulmano, Zaaf nunca tinha bebido álcool na vida. Estava agora em “maus lençóis” Aos poucos a sua visão ficou turva, fortes enjoos, começou a perder força nas pernas e a pedalar cada vez mais devagar. O francês Molinés já tinha escapado. A 10km de Nîmes, Zaaf perde o equilíbrio e cai no chão. O público depressa o levanta, mas o ciclista argelino começa a pedalar em sentido contrário para cair de novo uns metros à frente.
Zaaf estava bêbedo. Zaaf tinha uma bela “carraspana “!
 
Zaaf caiu embriagado !
 
 Tinha terminado o sonho de Abdel Kader Zaaf. O argelino já não seria o primeiro africano a ganhar uma etapa na prova mais importante do mundo.
Socorrido por populares é levado mais tarde para o hospital e não termina a etapa. Apesar de aconselhado pelos médicos a repousar durante uns dias ele não desiste.
No dia seguinte apresenta-se na partida.  É com uma chuva de aplausos e cumprimentos de todos os outros ciclistas e público que é recebido. Uma demonstração de reconhecimento e gratidão pela sua coragem e ousadia. Mas o regulamento do Tour era conhecido e o pior confirmou-se. Jacques Godet, diretor de prova, anunciou a desclassificação de Zaaf por não ter cumprido os últimos 10km da etapa anterior. E é de novo com uma forte salva de palmas que o argelino parte em direção a Nîmes para completar aquilo que uma garrafa de vinho não o deixou fazer.
Nada feito, Zaaf foi excluído do Tour onde esteve perto de conseguir a proeza de ser o primeiro africano a triunfar na “Grande Boucle”.
 
Zaaf começou a fazer publicidade ao vinho

 

Se pedalares não bebas! Que o diga o argelino Zaaf e a sua valente “carraspana”!
 
 

Estas e outras crónicas em:   www.aguadeirotrepador.blogspot.com
 

terça-feira, 26 de junho de 2018

26/06/2017 - Parabéns ao Aguadeiro Trepador Blog !




 Andamos por aqui há precisamente 1 ano.
Nestes primeiros 365 dias de vida tivemos 112 111 visualizações o que ultrapassa de longe as nossas expectativas. Foram 52 publicações onde contamos estórias, fizemos antevisões e alguns “guias” de provas. Também opinámos quando foi necessário. Estivemos na Volta ao Algarve e Alentejo como órgão de comunicação e estabelecemos algumas parcerias com outras publicações. Tentamos “ver e escrever” o ciclismo de forma diferente.
Nem todos gostaram do que escrevemos. Não faz mal. Aqui no Aguadeiro Trepador somos livres de pensamento. O Aguadeiro Trepador escreverá daquilo que quiser, como quiser e onde quiser! Escreve-se o que se pensa. Pensar é grátis!
Afinal o objetivo do projeto é mesmo esse!

Parabéns ao Aguadeiro Trepador Blog!

Acompanhem e ajudem a crescer o AT aqui:



domingo, 3 de junho de 2018

Imagens com estória nº 1: " Finalmente ganhou o Gamito "


Para iniciar esta nova rúbrica do Aguadeiro Trepador Blog: “Imagens com estória” escolhemos um momento de ciclismo nacional. De alguma forma até pessoal.  Esta foi a etapa da Volta a Portugal que mais ficou na nossa memória e que mais vibramos.

“Finalmente ganhou o Gamito. “

Tudo se passou no segundo dia de agosto de 2000. A etapa ligava Guarda ao Alto da Torre numa extensão de 168km. Estávamos no 10º dia de competição e o dinamarquês Claus Moller (Maia MSS) liderava a prova depois de vencer no alto da Senhora da Graça.

Entre os adeptos portugueses Vítor Gamito liderava as preferências. Era o mais popular.  Gamito entrou na Volta a Portugal de 2000 pronto para quebrar o enguiço do “Raymond Poulidor” à portuguesa. Segundo classificado por 4 ocasiões: 93,94, 97 e 99, viu escapar-lhe a vitória em 1999 no “famoso” contrarrelógio de Cantanhede onde até partiu como favorito, mas foi o espanhol do Benfica David Plaza a terminar de amarelo com apenas 9 segundos de avanço. Nesse contrarrelógio o rádio-comunicador nunca funcionou e Gamito só soube que tinha perdido a Volta a Portugal quando cruzou a linha de meta e viu a equipa benfiquista a festejar.

Em 2000 o ciclista lisboeta corria pelas cores da alentejana Porta da Ravessa e à entrada para a etapa rainha ocupava apenas o 9º lugar a cerca de 1minuto do ciclista da Maia MSS. Gamito atrasou-se na subida ao Monte Farinha. Um “problema de hemorroidas”, soube-se um tempo depois. À frente do homem da Porta da Ravessa encontravam-se outros nomes de peso: José Azevedo, Joaquim Gomes e Andrei Zintchenko. Na etapa com chegada ao ponto mais alto de Portugal continental os ataques teoricamente iriam sair desta tripla, mas foi Vítor Gamito que à saída da cidade da Covilhã desferiu o ataque que mudou a história da edição da Volta a Portugal de 2000, mas também mudou a sina do “eterno segundo” e colocou de alguma forma justiça numa carreira marcada pelo azar que tinha tudo para ter sido brilhante.

Gamito acelerou na passagem pelas difíceis rampas do antigo Sanatório e lembrou-se do episódio do CRI do ano anterior. De novo o rádio não estava a funcionar. Gamito queria saber a vantagem que trazia e do outro lado apenas o silêncio. Numa mistura de indignação e irritação atirou fora o “peso morto” (todos se devem lembrar deste episódio) e arrancou à procura da frente da corrida onde estava o colombiano da Kelme, Felix Cardenas.

Á passagem pelas Penhas da Saúde já liderava a corrida com 1m30s  de vantagem para o grupo da camisola amarela Claus Moller. Gamito estava imparável e entrou para aqueles últimos 300m da chegada à Torre com uma multidão em êxtase vibrando com a fabulosa exibição do ciclista português. Ganhou a etapa, ganhou a amarela e estava com cerca de 1m30s  de vantagem para os seus rivais. Gamito tinha tudo para finalmente ganhar a Volta a Portugal em bicicleta.

No dia 2 de agosto de 2000 Gamito foi brilhante e obteve a sua vitória mais importante . Tinha dado um passo de gigante para virar a historia a seu favor e escrever o nome na lista de vencedores da Volta a Portugal em bicicleta.

A confirmação do sucesso deu-se no CRI individual entre Portalegre e a bonita vila de Marvão. Em pleno parque natural da serra de São Mamede, Gamito vence de forma categórica a etapa ultrapassando nos metros finais o segundo classificado Claus Moller. Finalmente iria acabar a prova rainha portuguesa no primeiro lugar do pódio.

Na nossa volta, o triunfo de Vítor Gamito no santuário ciclístico do Alto da Torre é provavelmente a vitória mais celebrada pelos adeptos portugueses nos últimos 20 anos. Pelo menos foi para o Aguadeiro Trepador.

Chapeau Vitor Gamito!